terça-feira, 2 de junho de 2015

Narrativa #4: Culto ao Leviatã

    Bem vindos de volta! Esta narrativa conta fatos offgame, que os jogadores não fizeram parte - ao menos não diretamente. As narrativas como esta serão um modo de mostrar as pequenas e grandes mudanças que os jogadores causaram em Tellerian, para o bem ou para o mal, assim como contextualizar cidades, povos, lugares e pessoas.
    Os fatos a partir daqui contados se referem à 2ª Temporada de Tellerian, 84 anos após a campanha original. Os personagens desta vez são: o guerreiro anão Belgest (Luis), neto de Belar, que foi personagem do mesmo jogador na Temporada anterior; Adaak (Neto), um paladino que se juntou à Ethos para se redimir de ter causado a morte da própria família num acesso de fúria sobrenatural; o clérigo Érebor (Eddie), com um passado sombrio e uma conexão simbiótica com um espírito das trevas chamado de Umbra; Raduh (Caio), um draconato verde exilado, que se juntou a Resistência Arcana e se tornou um cavaleiro rúnico com poderes das trevas [vocês o verão aqui no blog através de seu diário]; Lilrelei, ou Liu, (Mateus), um ladino explorador meio elfo, irmão de Ellian (Marcela), uma meia elfa como o irmão, mas com um espírito sanguinário de bárbara; e Miryo (Sara), uma ranger desertora da Ethos, cuja família foi assassinada pela própria instituição, fato que ela descobriu tardiamente.

Narrativa #4 - Culto ao Leviatã

   A madrugada silenciosa dos portos estava tão tranquila quanto sempre, sua quietude abalada apenas pelo som das ondas se chocando contra o cais. O frio formava uma densa névoa sobre a água, que se erguia do Lago Comprido como uma neblina úmida, cobrindo toda a Baixada.

   Sozinho no Armazém 12, Irvin amaldiçoava seu chefe e a família deste, rogando pragas silenciosas enquanto desencaixotava sacas de milho. Tiritava de frio sob o gibão de peles, esfregando as orelhas para aquecê-las.
   A lua crescente desapareceu atrás de pesadas nuvens, obrigando-o a parar e acender mais lamparinas para dispersar a escuridão, mas as trevas daquela noite pareciam mais densas, mais frias, quase maléficas, pesando sobre ele... Os pingos pesados da chuva cessaram suas reflexões, jogando-o de volta ao mau humor de antes.
   Terminou o serviço praticamente abraçado à uma lamparina, tentando livrar-se do frio que penetrava por suas roupas molhadas. Trancou o armazém, apressando os passos para encontrar sua cama o quanto antes, quando ouviu sons gorgolejantes e o som de vozes se perdendo na neblina.
   Estranhou, com bons motivos, a presença de pessoas ali, ainda que ele mesmo estivesse trabalhando até tão tarde no cais.

   “Quem, pelo Abismo, está aqui fora num frio desgraçado desses?!”, pensou ele. "Outro fodido."


   Irvin estreitou os olhos, esticando a mão que segurava a lamparina e caminhando na direção da água. O som gorgolejante se tornou mais audível e o jovem apressou o andar, olhando para a água e temendo que alguém estivesse se afogando ali perto, escondido pela neblina.
   Se aproximou com um nó na garganta, sem saber bem o que esperar, mas atraído por uma curiosidade que lhe era estranha. Temeu, por um segundo, encontrar apenas o cadáver gélido de um conhecido.
   Então, paralelo ao gorgolejar incessante, ouviu vozes rudes murmurando algo que não compreendia. O cântico se tornou mais nítido confirme o jovem se aproximava, então cessou repentinamente, junto com o som que o havia deixado tão inquieto. Saltou a grade que bloqueava a passagem para o quebra-mar, estacando ao aterrissar do outro lado. Ficou completamente abismado com o que via.

   Na parte mais baixa das pedras, duas ou três dezenas de homens e mulheres estavam parados, encharcados e imersos na água até os joelhos. Uma dúzia ou mais deles traziam lamparinas e as luzes tremulantes das chamas revelavam rostos deformados, de olhos esbugalhados e pele flácida como sapos; seus cabelos eram tufos esparsos de pelo fino, colados na cabeça pelo toque da chuva; aqueles que abriram as bocas em silvos e sons sibilantes mostraram dentes podres e buracos vazios de dentição irregular.

   Engolindo em seco, tremendo sem saber se de frio ou de medo, Irvin olhou – paralisado – para a água, onde um par de grandes homens deformados seguravam um terceiro, que pendia inerte.
   O que viu depois disso decretou o seu fim. O jovem soltou um berro esganiçado e derrubou a lanterna que trazia, atraindo a atenção daquelas criaturas. Tentou correr daqueles que vieram na sua direção, mas as penas não obedeceram.

   A criatura, o monstro que emergiu do lago, espalhando a névoa, parecia saído de um pesadelo. O couro azulado e mucoso era quase negro, seu corpo disforme era maior que o de qualquer criatura que ele já tivesse visto. Sob ele, tentáculos compridos saíram da água, esticando-se para o moribundo.
   Na protuberância tosca que era sua cabeça, o monstro ostentava três olhos, um sobre o outro: olhos rubros como entranhas, imensos e cintilantes, profundos e tão cheios de compreensão e maldade que fizeram o estômago do jovem revirar e colocar para fora tudo o que comera.
   O monstro parecia refastelar-se com o medo. Sua bocarra com inúmeros dentes agudos se abriu, sugando água com um som gorgolejante, depois a excretou com o mesmo som, mas repleta de um muco escuro com o fedor do mais podre esgoto.

   Como um trovão, a voz profunda e grave da criatura vibrou sua cabeça, fazendo Irvin ver manchas pretas. A tontura causada pelo cheiro horrendo e pela pressão abissal que a voz produziu em sua cabeça, quase o levou à inconsciência, deixando-o inerte e apático.

   - Aceite... A Benção... - disse o monstro, enroscando o primeiro prisioneiro com quatro asquerosos tentáculos.
   Todas as criaturas presentes passaram a bater freneticamente em seus tórax, erguendo suas vozes em gritos tribais cheios de silvos e rosnados.
   Irvin, arrastado por duas delas, tocou as pernas na água fria, retomando consciência a tempo de ver o prisioneiro começar a se debater em espasmos descontrolados, juntando seu berro de dor à gritaria ensandecida das criaturas.

   - Aceite a Benção das profundezas. - ordenou o monstro, apertando o homem com seus tentáculos e afundando-o na água. - Aceite a Benção. Aceite a Benção.
   Muitas criaturas juntaram suas vozes ao ritual, sibilando e silvando de forma arrítmica. - Aceite a Benççççção. Assssceite a Benção!

   As bolhas subiram pelo que pareceu ser uma eternidade, enquanto o homem se debatia, submerso. Então cessaram.

    Fez-se silêncio.

   Do lugar onde o homem afundara, se ergueu lentamente uma criatura de feições anfíbias, recoberta de muco putrefato. Erguendo a face para a chuva que caía, a criatura recém-nascida bateu no peito, rosnando, ao que todas as outras se uniram.

   - Tragam o outro. -  disse o monstro.

   E Irvin foi arrastado para a água podre.

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